sábado, 7 de julho de 2012



Você acredita na justiça?

            Era dia das crianças, 12 de outubro de 2007. Meu filho tinha 5 anos. Ele brincava num brinquedo colorido, todo recoberto de espuma, num dos maiores Shopping Centers da cidade do Rio de Janeiro.
            Qual foi o objeto perfuro cortante que transformou a sua alegria em uma enorme poça de sangue, lhe causou traumatismo craniano, o submeteu a uma cirurgia plástica no rosto e a uma recuperação bastante traumática? Nunca saberei. A primeira providência do parque foi limpar o brinquedo e abri-lo novamente ao público.
            Cinco anos depois estou no lugar certo para que a justiça seja feita. A juíza pergunta:
- Seu filho ficou com alguma seqüela permanente?
- Ele ficou com uma cicatriz...
            E ali começou o MEU julgamento. Sou cerceada na minha fala, na minha dignidade, na minha cidadania.
- Ora, uma cicatriz todo mundo tem.
- Mas excelência...
- A senhora me deixe falar. A senhora fique quieta. A senhora não me interrompa!
            E eu não pude falar. Era meu filho, e eu não pude falar. Ela tirou de mim o direito à fala, à expressão, à voz. Não pude dizer que a cicatriz que ele tem na testa, entre os olhos, considerada pelo perito como dano estético, marcou definitivamente a sua vida. Ele não pode mais olhar no espelho sem se lembrar de tudo o que passou. As crianças, o desenham com uma cicatriz na testa excelência! Ela identifica, muda a forma como ele é visto e, toda vez que alguém pergunta, ele tem que explicar todo o trauma que quer esquecer.
            Ela só não tirou de mim o direito às lágrimas que desceram do meu rosto enquanto eu a ouvia dizer:
- A senhora não entende o que está sendo discutido aqui. A senhora deve ser uma dona de casa.
            Sem direito à fala, respondia na minha mente: “Minha mãe é dona de casa, excelência! E tenho orgulho disso. Ela não teve acesso à educação formal, mas certamente seria incapaz de fazer com o próximo o que a senhora fez comigo. Eu não sou dona de casa excelência. Trabalho numa empresa pública, fiz concurso como a senhora e sei exatamente o que isso representa. O contrário do que a senhora faz aqui.”
- Essa cicatriz vai deixá-lo mais charmoso!
            A essa altura eu estava com o rosto vermelho e já não conseguia controlar o choro.          “Mais charmoso, excelência? A senhora está falando do meu filho, que se arrastou no chão por dois dias e não queria receber os amigos porque achava que iria ficar cego para sempre. Que por muito tempo andou de boné para esconder o rosto. Respeite a minha dor”.

            E foi assim, muda, que vi a dor do meu filho ser tabelada por jurisprudências.
- Vocês devem considerar o acordo proposto porque se eu tiver que dar a sentença posso dar mil, dez mil.
Quando achei que meu julgamento já tinha cessado, ela pergunta:
- A senhora acredita na justiça? Vociferou a magistrada.
            Enquanto eu pensava “será que agora posso responder?” Ela aumentou o tom de voz.
- Acredita? A senhora acredita na justiça?

            Para acreditar na justiça, excelência é preciso experimentá-la enquanto cidadã. Não pude falar, mas posso escrever. Minha dor não tem preço. O que meu filho e nós passamos não pode ser reparado por uma quantia em dinheiro. O que nos fez enfrentar cinco anos de tribunal não foi a intenção de enriquecer ilicitamente, mas a clareza de que a função pedagógica da pena só faz sentido para pessoas jurídicas quando fala a linguagem que elas mais prezam: a do dinheiro. Neste sentido, excelência, o quantum a desembolsar determina o risco que as outras crianças correm, a partir de hoje. Hoje, respondendo à sua pergunta e afirmo: sim, acredito na justiça – na divina.
 
    

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