Você acredita na justiça?
Era
dia das crianças, 12 de outubro de 2007. Meu filho tinha 5 anos. Ele brincava
num brinquedo colorido, todo recoberto de espuma, num dos maiores Shopping
Centers da cidade do Rio de Janeiro.
Qual
foi o objeto perfuro cortante que transformou a sua alegria em uma enorme poça
de sangue, lhe causou traumatismo craniano, o submeteu a uma cirurgia plástica
no rosto e a uma recuperação bastante traumática? Nunca saberei. A primeira
providência do parque foi limpar o brinquedo e abri-lo novamente ao público.
Cinco
anos depois estou no lugar certo para que a justiça seja feita. A juíza
pergunta:
- Seu filho ficou com alguma
seqüela permanente?
- Ele ficou com uma cicatriz...
E
ali começou o MEU julgamento. Sou cerceada na minha fala, na minha dignidade,
na minha cidadania.
- Ora, uma cicatriz todo mundo
tem.
- Mas excelência...
- A senhora me deixe falar. A
senhora fique quieta. A senhora não me interrompa!
E
eu não pude falar. Era meu filho, e eu não pude falar. Ela tirou de mim o
direito à fala, à expressão, à voz. Não pude dizer que a cicatriz que ele tem
na testa, entre os olhos, considerada pelo perito como dano estético, marcou
definitivamente a sua vida. Ele não pode mais olhar no espelho sem se lembrar
de tudo o que passou. As crianças, o desenham com uma cicatriz na testa
excelência! Ela identifica, muda a forma como ele é visto e, toda vez que
alguém pergunta, ele tem que explicar todo o trauma que quer esquecer.
Ela
só não tirou de mim o direito às lágrimas que desceram do meu rosto enquanto eu
a ouvia dizer:
- A senhora não entende o que
está sendo discutido aqui. A senhora deve ser uma dona de casa.
Sem
direito à fala, respondia na minha mente: “Minha mãe é dona de casa,
excelência! E tenho orgulho disso. Ela não teve acesso à educação formal, mas
certamente seria incapaz de fazer com o próximo o que a senhora fez comigo. Eu
não sou dona de casa excelência. Trabalho numa empresa pública, fiz concurso
como a senhora e sei exatamente o que isso representa. O contrário do que a
senhora faz aqui.”
- Essa cicatriz vai deixá-lo mais
charmoso!
A
essa altura eu estava com o rosto vermelho e já não conseguia controlar o
choro. “Mais charmoso,
excelência? A senhora está falando do meu filho, que se arrastou no chão por
dois dias e não queria receber os amigos porque achava que iria ficar cego para
sempre. Que por muito tempo andou de boné para esconder o rosto. Respeite a
minha dor”.
E
foi assim, muda, que vi a dor do meu filho ser tabelada por jurisprudências.
- Vocês devem considerar o acordo
proposto porque se eu tiver que dar a sentença posso dar mil, dez mil.
Quando achei que meu julgamento
já tinha cessado, ela pergunta:
- A senhora acredita na justiça?
Vociferou a magistrada.
Enquanto
eu pensava “será que agora posso responder?” Ela aumentou o tom de voz.
- Acredita? A senhora acredita na
justiça?
Para
acreditar na justiça, excelência é preciso experimentá-la enquanto cidadã. Não
pude falar, mas posso escrever. Minha dor não tem preço. O que meu filho e nós
passamos não pode ser reparado por uma quantia em dinheiro. O que nos fez
enfrentar cinco anos de tribunal não foi a intenção de enriquecer ilicitamente,
mas a clareza de que a função pedagógica da pena só faz sentido para pessoas
jurídicas quando fala a linguagem que elas mais prezam: a do dinheiro. Neste
sentido, excelência, o quantum a desembolsar determina o risco que as outras
crianças correm, a partir de hoje. Hoje, respondendo à sua pergunta e afirmo:
sim, acredito na justiça – na divina.